08 / 11 / 2008 Cientistas dão o primeiro passo para a 'espionagem cerebral'
Em várias brincadeiras infantis, como a chamada cabra-cega, mesmo com os olhos fechados a criança sabe quem está falando e o que a pessoa diz. Mas descobrir o que se fala e quem discorre, a partir apenas da análise da atividade cerebral, era uma incógnita para os cientistas. Em busca de uma resposta o pesquisador Elia Formisano, da Universidade de Maastricht, na Holanda, e sua equipe descobriram como o cérebro consegue realizar essa proeza. O estudo foi publicado na edição desta semana da revista “Science”.A partir dos dados e das imagens da ressonância magnética, os pesquisadores descobriram que o córtex auditivo, localizado atrás da orelha - no lobo temporal -, é a parte do cérebro que descobre quem está dizendo e o que essa pessoa fala. E constataram que os circuitos cerebrais responsáveis por identificar as vogais faladas e os oradores não são necessariamente as mesmas. A mente utiliza maior atividade cerebral para entender os sons do que reconhecer as pessoas.A equipe de Formisano também notou que existem outras partes do cérebro responsáveis por essa função. Elas se dão nos locais de processamento neuronais mais sofisticados, como as áreas do entendimento e da razão. E percebeu que certos padrões se repetem e podem ser identificados, dependendo de quem está falando e o que está sendo dito.“Como impressões digitais, o traço neural de uma palavra não muda dependendo de quem fala. O traço neural do falante não muda dependendo do que ele diz”, afirma o cientista ao G1. Dessa maneira, a pesquisa mostra que é possível construir um “sistema de reconhecimento vocal” com base nas medições dos sinais do cérebro de um ouvinte.Para verificar como seria possível realizar esse “grampo cerebral” - uma alusão biológica à escuta telefônica -, sete voluntários fizeram ressonância magnética cerebral funcional - aquela que observa a atividade do cérebro - enquanto ouviram três pessoas diferentes pronunciarem as vogais “a”, “i” e “u”. Assim, o grupo de cientistas observou quais partes do cérebro eram ativadas. Em seguida fez uma análise das imagens obtidas utilizando um algoritmo - fórmula matemática freqüentemente usada em computação - criado por eles. Com isso, conseguiram identificar os padrões associadas a cada uma das vogais ou a cada um dos falantes. A próxima etapa dos pesquisadores será a tentativa de reproduzir resultados semelhantes em situações mais complexas e realistas. “No atual experimento, as vozes e as pessoas falando foram apresentadas de forma isolada”, explica. “No entanto, na vida real, estamos rodeados por muitos sons que são sobrepostos uns aos outros”, completa. Como o nosso cérebro trabalha tão bem para separá-los e como esse órgão tem a noção de que som é mais relevante ainda um mistério. “Pense em uma conversa em uma estação ferroviária que é perturbada pela chegada de um trem ruidoso. Como você pode ainda reconhecer o que seu amigo está dizendo?”, reflete Formisano. Aplicações para valer - À primeira vista, o estudo parece mais uma curiosidade do que qualquer outra coisa. Afinal, ouvir e reconhecer o que e quem fala são tarefas cotidianas. As pessoas que não possuem problemas neurológicos ou alguma doença relacionada à audição conseguem executar a tarefa. Porém, nos casos de derrame cerebral, esclerose múltipla ou lesões causadas por doenças, o estudo ajudará a descobrir que área do cérebro foi afetada.“Esse conhecimento pode ser relevante para a engenharia criar dispositivos mais eficientes de reconhecimento automático de voz e fala ou aparelhos auditivos com um desempenho melhor do que os atualmente existentes, problemáticos especialmente em ambientes ruidosos”, explica o pesquisador. E, quem sabe no futuro, o estudo servirá como base para corrigir esses problemas usando a robótica ou as células-tronco.Também, daqui muitos anos, será possível grampear cerebralmente suspeitos de crimes graças à descoberta? Benito Damasceno, professor de neurologia e neuropsicologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), acredita que isso é inviável. “Descobrir o que as pessoas ouvem e quem fala com elas por meio da atividade cerebral seria uma maravilha para as polícias mundiais”, diz.Já o pesquisador holandês é mais otimista: “Em princípio, será possível descobrir a identidade e fala pelo cérebro do ouvinte, apesar de que precisamos trabalhar muito mais para isso”. Dificuldades em estudar o cérebro - Damasceno explica que, hoje em dia, é impossível descobrir o conteúdo das frases que uma pessoa ouve a partir da sua atividade cerebral. “Nós podemos supor sobre o que a pessoa fala, mas não o pensamento”, diz. De forma geral, em todas as pessoas, do lado esquerdo do órgão se processam os fonemas. E do lado direito, o som de maneira geral, como o canto dos pássaros.Estudar o cérebro - e fazer mais descobertas - é complexo. Segundo o neurologista, as principais dificuldades se dão porque é inviável separar registros da fala de outras emoções e lembranças que possam estar associadas a ela. Ao reconhecer a voz de alguém, independente do que é dito, o cérebro “liga” determinadas áreas. “Além disso, as atividades cerebrais podem variar de acordo com cada pessoa. O cérebro de um analfabeto pode reproduzir ‘caminhos’ de atividades ou ligações diferentes de alguém mais culto, por exemplo.” (Fonte: Isis Nóbile Diniz/ G1)